segunda-feira, 15 de julho de 2013

apesar de.

- Não vai dar.
- E por que não?
- Porque eu já disse, não dá.
- Mas algum motivo deve haver, você namora?
- Não, não namoro.
- Então...?
- É mais.
- Mais?! Você já é casada?!
- Não, mais sério.
- Então não entendo nada.
- Não vai dar porque eu gosto de outra pessoa.
- Mas vocês estão juntas?
- Não.
- Eu não entendo você amar alguém que não está junto de você.
- Mas ela está. É que assim... ah, eu já vou indo, viu? Deixa um abraço pro pessoal.

Por um segundo de loucura, eu pensei explicar o que eu havia dito, mas a penúltima frase foi a deixa que minha testa esperava para espremer num único franzir toda o desprezo e incompreensão por aqueles dizeres e ir embora à francesa, sozinha e sem me preocupar com o taxímetro. Ao chegar em casa, antes de analisar as curiosidades daquela noite, especialmente o diálogo final, resolvi enfrentar o frio e tomar um banho escaldante enquanto fervia a água. A vermelhidão da minha pele era percebida mesmo no espelho inteiramente embaçado e ali mesmo, coloquei meu mais surrado e quente moletom para não constipar ao sair no vento gelado que dobrava o corredor, devido à janela aberta da área de serviço. Como era óbvio, a água equivalente a uma xícara havia evaporado totalmente enquanto eu me demorava lavando a cabeça, então enchi o bule com outra remessa para que ela ebulisse enquanto eu colocava minhas meias e tirava a umidade do meu cabelo com a toalha, na medida do possível. Abri o sofá e nele me deitei, rodeada por travesseiros e almofadas, devidamente coberta e, enquanto passava na TV algum programa sobre crocodilos do Rio Nilo (ideal para não roubar minha atenção, que já pairava sobre o que eu havia escutado há poucas horas e que havia me espantado mais por admitir quão recorrente era aquela ideia de amor expressada), comecei a tomar meu chá de capim cidreira. 


Não deixei de achar graça naquela lógica sentimental proposta pela minha interlocutora, pois então, segundo ela, casais que se veem nunca estariam passíveis de se separarem. Ri do disparate corriqueiro no qual nós incorremos ao tentar equacionar o amor em fórmulas científicas, quando o resultado que ele nos daria para um 2 + 2 seria batata. Entremeio a estas bobeiras, concluí que não compensaria me demorar naquele diálogo tentando me explicar, seja porque este sentimento não é condicionado e a procura de motivos o ofenderia, seja porque meu sofá já havia me seduzido em imaginação. Não deixou de ser curioso perceber o quão ininteligível aos olhos da maioria é amar alguém sem que não se tenha obviedades apoiando isto, não deixou de ser desanimador ver como é inconcebível para muitos amar apesar de. Nada há de estranho em dizer e reiterar que se ama alguém, desde que aquela relação esteja inserida em todas as convenções necessárias para se sustentar a frase "Eu te amo.", pouco importando se ela corresponde à realidade; há menos anormalidade em alguém que brinda com infidelidade ou deslealdade o amor que diz sentir pelo outro do que em escutar de alguém que se ama silenciosamente, independentemente do subsídio que muitos veem erroneamente como imprescindível ao amor: a presença, a reciprocidade, a prestação paga pelo outro. 

Amar alguém apesar de. significa conferir ao amor a autonomia que lhe é devida; amar alguém apesar de. o esteriliza das justificativas pretensas a darem lógica a sua existência e o emancipa de toda e qualquer influência. Eu senti pena da minha interlocutora naquele diálogo, mas não o suficiente para tentar explicar-lhe que o meu amor vive por si só, ou melhor, vive somente pelo fato de C. existir - e eu disse existência e não vivência, porque eu amo C. há tempos passados e já me antecipei aos futuros, amo-a há tanto e tanto que nossa vã filosofia não saberia estimar. Portanto, não a culpo por não ver sentido quando atribuí maior seriedade ao amor que sinto do que a qualquer materialização do compromisso social - namoro, casamento..., uma vez que a noção majoritária que se tem deste sentimento é um tanto quanto rasa pois nasce quando tudo está maravilhosamente bem encaixado, quando não há medo nem angústia, quando o fogo está no auge e quase tão facilmente como respirar sai da boca o "Eu te amo". Não que o amor necessite de dificuldades para se reafirmar (isso contrariaria o que eu disse logo acima, a respeito de sua autonomia), mas ele seria desnecessário num contexto em que somente a paixão daria conta de sustentar duas pessoas juntas - e está aí a origem da confusão: verbalizar amor quando não se ama apesar de. 


Bem acomodada no sofá, eu poderia ter empreendido uma cruzada para esclarecer tudo isto àquela moça, mas eu não converso sobre este assunto nem com meus amigos, que dirá com estranhos, e ficar ali em casa estava muito mais gostoso do que na rua. Além disso, seria muito dispendioso explicar a alguém que um amor da vida só o é se ele dura uma vida inteira e ainda assim ele seria pouco perto de um amor que é de todas as suas vidas. Seria difícil fazê-la entender que embora eu não estivesse com C., em nenhum momento ela estará sozinha. Seria complicado demais explanar que eu amo C. porque aos olhos dos outros não há razão para que eu a ame; seria realmente penoso demonstrar-lhe que eu amo C. não porque dela espero algo, mas tão somente porque, apesar dos olhos dos outros, seus olhinhos negros são os únicos que me importam.


Coloquei a caneca no chão e peguei no sono.





Saudades! Sim... Talvez... e porque não?... 
Se o nosso sonho foi tão alto e forte. 
Que bem pensara vê-lo até à morte. 
Deslumbrar-me de luz o coração! 

Esquecer! Para quê?... Ah! como é vão! 
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte.
Deve-nos ser sagrado como o pão! 

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais decididamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim: 
Quanto menos quisesse recordar. 
Mais a saudade andasse presa a mim!

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