Depois de algum tempo,
a dona que limpava a sala após as sessões se familiarizou com a presença
retardatária daquela pessoa nalguma poltrona do canto esquerdo, sempre das
últimas fileiras. Nas primeiras ocasiões, ela se intrigava procurando o motivo
para aquela mulher se manter ali, mesmo após o filme já ter acabado. Entretanto, ela se habituou depois, como quando não mais se estranham atitudes curiosas tornadas hábitos, e ela a encarava com naturalidade – embora não houvesse perdido a curiosidade
sobre aquela conduta.
Após alguns anos frequentando aquele cinema, a atitude daquela moça não mais era estranhada
pelos que ali trabalhavam; na verdade, entre ela e os funcionários formou-se um
laço de cordialidade, e ninguém ousava indagá-la sobre a sua saída atrasada das
sessões, numa prudente postura daqueles que pressentem existir por detrás dum
curioso agir uma explicação além das imaginações.
Ela não se dirigia
somente até àquele cinema, mas preferia-o pelo clima mais íntimo que ele
possuía e pelos filmes que nele eram promovidos. Dona Jandira, a senhorinha que
limpava a sala, percebia que além de se manter ali até a projeção chegar ao
final, nalguns filmes – e somente
naquele solitário momento – ela levava a mão direita ao lado esquerdo do seu colo
e aquilo lhe parecia mais reticente do que sua insistência em ficar na sala
mais um tempo. Apesar de não aparentar nada de especial, aquela mulher
conservava essas duas atitudes que mexiam com a curiosidade de Dona Jandira e de
alguns que ali trabalhavam, que sabiam pela boca daquela funcionária sobre insistência em permanecer na poltrona após todos saírem e sobre a mania de elevar a
mão ao peito nalgumas oportunidades.
Para todos que
conviviam com ela, aquela mania de colocar a mão no peito era comum, mas não a
eximia das perguntas curiosas para saber o seu motivo. Ela sempre dizia se
tratar de um tique como qualquer outro, mas ao invés de não pisar nas linhas da
calçada ela fazia pôr a mão no colo quando algo lhe acontecia. Plausível para
os que ouviam a explicação, mas inverídica. Ela contava a mentira pois não
julgava necessário dizer o que realmente a impulsionava a fazer aquilo, tendo
em vista que era algo íntimo demais e que cabia somente a ela e ao que era por
ela acariciado naquele ato.
Numa certa terça-feira,
depois de terminado um filme da sessão semanalmente assistida por aquela
mulher, Dona Jandira finalmente se predispôs a sanar suas dúvidas e perguntou-lhe por que ela levantava a mão assim – repetiu o
gesto – algumas vezes. À ela foi dada a mesma explicação de sempre: era um toque, uma mania, um tique.
- Ah, mentira. Você faz
isso somente algumas vezes e bem pensado, então quer dizer que não é uma coisa
boba. Eu, por exemplo, quando algo de ruim atravessa meu caminho, mesmo que
seja um gato preto, eu me benzo e isso não é sem pensar.
Um pouco espantada com
a sensibilidade de Dona Jandira, única pessoa em anos a não engolir a sua
explicação – e ainda baseando-se em uma comparação tão simples e pertinente –
ela resolveu abrir-se pela primeira vez após muito tempo, oferecendo-lhe como prólogo a saudade que sentia do seu amor, que há muito havia dela se separado, e da sua vã tentativa de tentar matá-lo em si, logo após a separação de ambas.
- A gente é bobo, né?
Acha que essas coisas se vão com esses mantras que nos ensinam na rua, mas
acaba que só fortalece o que mora do lado de dentro, disse-lhe a senhora.
Ambas estavam sentadas
nas poltronas da penúltima fileira e Dona Jandira continuou ouvindo que após a
separação, ela tentou sacrificar o que sentia por aquela menina atendo-se aos
desentendimentos que aconteceram entre ambas, aos momentos ruins – ainda que
eles fossem infinitamente menores do que os bons – que elas passaram, pois era
necessário tirar o foco das saudades descomunais que ela sentia cada dia mais.
De tanto se empenhar nessa tarefa, as lembranças desagradáveis, que já eram
fraquinhas, ficaram desbotadas, e as bonitas, que perceberam antecipadamente a leviandade daquela empreitada e mantiveram-se quietinhas dentro de si, numa noite
tomaram conta de todo seu coração como se lhe dissessem que ali dentro estaria pelo resto dos dias ocupado e que seguir somente seria possível carregando
aquele amor no silêncio da saudade.
Dona Jandira ouvia tudo
atentamente, disfarçando a surpresa pelo fato de que o amor sobre o qual ela ouvia
era sentido por outra mulher, mas não atendo-se a esse detalhe; a placidez com
a qual lhe era relatada a história apoderou-se de seu íntimo e ela sentia certa
comoção naquele momento, quando pediu que ela continuasse. A sua interlocutora
não contava sua história com dor, mas suas palavras traziam toda dose de
saudade que existia no mundo, como se trancafiadas dentro dela por tantos anos
elas fora adquirindo essa crosta de sentimentos doces até que encontrou alguém
que realmente se interessou por ouvi-las e ao proferi-las, o açúcar inundava-lhe a boca e a alma com o gosto daquela menina.
Passado o tempo em que inutilmente se tentou apagar o que sentia, ela adquiriu hábitos
solitários e tranquilos Não fora negado à Dona Jandira que ela às vezes chorava
pela falta que sentia, principalmente antes do sono, mas foi justamente numa
destas noites que ela pegou-se acariciando seu coração, tal como fazia com sua
menina, quando passava suavemente a ponta dos dedos pelo seu braço, fazendo-a
adormecer naquele que talvez era o carinho preferido dela. Depois disso, ela
acostumou-se a apaziguar as dores da saudade acariciando discretamente esse pedaço seu, fosse em sua casa, na rua, no trabalho, em qualquer lugar do
mundo, de modo que um gesto outrora somente para amenizar uma tristeza passou a
ser feito em qualquer momento, como se ela contasse-lhe por meio daquele alisar o que acontecia no seu dia-dia.
O que fora silenciado
entre elas foram somente as palavras e é verdade que ela não mais a cheirava, a
olhava, mas como acontece àqueles que carecem de algum sentido, seu tato fora
aguçado de modo que ela conversava com quem amava acariciando seu coração. Aquilo tornara-se sua proteção contra os maus-agouros do mundo; era o sue benzer.
Dona Jandira encontrava-se de certo modo consternada por aquela história e o saco de lixo
que ela trazia na mão fora deixado ao chão de tão entretida que ela estava. A sua dúvida fora sendo elucidada de forma surpreendente, mas não
inteiramente, pois ela ainda não entendia o porquê dela ser sempre a última a
sair da sala e mesmo se manter com os olhos pregados na tela enquanto conversavam.
Perguntou-lhe, então, a razão para isso.
- É que ela trabalha
com essas coisas de cinema e eu procuro o nome dela nos créditos. Quando o encontro, fico orgulhosa, me bate uma saudade, daí levo a mão ao peito.
- Então agora está tudo
explicado, disse-lhe Dona Jandira. Agora eu entendi a pátria amada.
- Pátria amada?
- Sim, era como eu te
chamava por causa dessa sua mania. No início, das primeiras vezes que percebi, achei que era algum jeito de homenagear um filme brasileiro... você sabe, né?! Eu não entendo dessas coisas e cada doido com sua esquisitice. Mas quando vi que não tinha nada a ver, o apelido já tinha pegado.
Dona Jandira tinha um senso de humor gostoso. Aquela mulher riu da originalidade do apelido e
levantou-se para ir embora, não antes sem agradecer aquela senhora por a ter
ouvido sobre algo que há muito tempo não era falado. Quando encaminhava-se para
a saída, após despedir-se, Dona Jandira a interpelou em voz alta, enquanto
enfiava um balde de pipoca no saco de lixo:
- Aqui...
- Oi, Dona Jandira!
- Ela te amou muito, né? Digo, pra você ainda sentir tudo isso...
- Amou sim.
- Hm... E sabe até quando você vai fazer isso?
- Fazer o que?
- Carinho nela dentro do seu coração.
- Não tenho ideia, Dona Jandira. Não tenho a menor ideia.
- Eu sei. Você vai fazer isso até sua pele ficar enrugada igual à minha e a partir de hoje vou te chamar de amada-amada.
- Amou sim.
- Hm... E sabe até quando você vai fazer isso?
- Fazer o que?
- Carinho nela dentro do seu coração.
- Não tenho ideia, Dona Jandira. Não tenho a menor ideia.
- Eu sei. Você vai fazer isso até sua pele ficar enrugada igual à minha e a partir de hoje vou te chamar de amada-amada.