terça-feira, 17 de setembro de 2013

Contadora de mentiras

- Eu não vou conseguir lidar com isso, ela lhe disse.

- Vai sim, anjo. Olha só, as coisas vão se acertar e você vai superar. A vida é muito boa!

E de fato seria. Era inegável que qualquer um consideraria a vida melhor. Eles tinham que encarar muitas dificuldades para se encontrarem e os momentos que passavam juntos começaram a perder força diante da tristeza de se verem separados. A vida seria mais fácil, ela seria boa.

Ela acordou e, apesar de todo seu interior estar comprimido no espaço d'uma caixa de fósforos, no capacete dum escafandro, desceu os poucos centímetros da cama e apegou-se ao fato de que algumas preocupações que lhe afligiam não mais existiriam de hoje em diante, pois ela não mais precisaria procurar maneiras de ir para perto dele, não mais precisaria encarar a tristeza da despedida ou a aflição de um incerto futuro a dois. A sensação que predominava a tudo isso era de uma dor insuportável, é verdade, mas somente porque essas novas doces verdades ainda não tinham sido por ela assimiladas e aqueles sentimentos que insistiam em reportá-la às lembranças dos abraços, dos olhos, dos sorrisos, das palavras, de tudo que era ele dentro dela, passariam após o café da manhã, porque a vida seria boa e aquela voz exagerada que vinha de dentro não sabia quão boa seria ela, posto que nada soubesse do que se passava aqui de fora, de como tudo era bonito do lado de cá.

Ela se arrumou da melhor maneira possível e se dirigiu ao emprego, onde ocuparia um novo cargo - promoção recebida na semana anterior; quando colocou os pés na rua, percebeu que aquela realidade era linda pra muita gente, que aquele ar de liberdade deveria ser bem gostoso, e por isso se comprometeu a não permitir que nada a atingisse de agora em diante, porque ela realizaria muitos novos sonhos sozinha ou mesmo ao lado de outra pessoa – desde que a essa ela não se entregasse, porque a vida que surge em função do que vem de dentro não seria tão boa quanto àquela respirada por todos na sua frente, com ares joviais, obstinados e inabaláveis... ah, como deveriam ser belas aquelas pessoas!

Seu passo era pretensiosamente mais seguro e foi assim que ela chegou em seu trabalho. Após todos cumprimentarem-na pelo novo posto, ela foi ao banheiro, trancou-se numa cabine e chorou silenciosamente, enfiando as unhas nas palmas das mãos, sentindo suas entranhas contorcerem-se e seu coração gritar dentro de si que ali dentro estava vazio, que estava faltando alguma coisa, mas e daí?! Afrontou-o dizendo-lhe que aquele choro ia passar quando ela lavasse a cara e voltasse pra sua nova sala; ordenou-o que se calasse, pois a dor que morava ali dentro, aquela dor não sabia que ela tinha uma nova mesa de design inovador e que a mandariam para um congresso fora do Brasil – viagem essa livre das saudades que, se antes, ela sentiria por ele. A vida seria boa e, ainda assim, aquela porra de coração insistia ignorar seu novo salário e os prêmios que recebera da diretoria!

Ao voltar para casa, ela convenceu-se de que era muito gostoso ter um tempo para si e que poderia fazer o que bem entendesse. Entrou no banho e, após uma hora sentada no chão do banheiro, escaldando a nuca e as costas com a água que lhe caía sobre o corpo - e que, em vão, tentava disfarçar o choro da sua alma -, ela se aprontou e saiu pra rua. O sentimento que estava dentro dela somente purgava daquela forma porque sequer fazia ideia de quanta gente interessante, de quantos meninos bonitos existiam aqui de fora; aquele sentimento escandaloso não via como a vida seria boa agora que ele havia partido.

Até mesmo a bebida queria se mostrar para ela, e depois de muitas garrafas ela resolveu dormir na casa de um antigo amigo, desses que reaparecem para mostrar como seria bonita a vida e que de tanto isso repetir, poupava-lhe por alguns minutos o desgaste do auto-convencimento. No sofá daquela casa estranha, censurou as lágrimas repetindo para para si como era legal poder fazer aquilo sem nenhum problema, quando bem entendesse e reafirmava em seu íntimo que "aquela boazuda da vida vai me seduzir, é só aguardar, não tem erro".

Ao acordarem, resolveram viajar naquele mesmo final de semana, num ímpeto de impulsividade próprio daqueles que tentam ser inovadores, mas esbarram na artificialidade. Os novos ares daquela fase que se anunciava tão bonita e leve deveriam ser aproveitados e apesar de seus olhos terem amanhecidos amarrotados e vermelhos, seu amigo não lhes deu muita atenção, pois toda tristeza iria passar assim que pegassem a estrada. Aquela nova vida, disse a ela, não lhe dará muito tempo para lamúrias, para baboseiras sentimentais; aqui de fora, é tudo rápido e se não funciona, ba-bay! Mas simples assim? ela lhe perguntou, um pouco surpresa. Desse jeito mesmo, respondeu-lhe, e a regra é não se apegar demais, deixar rolar e foda-se, sentenciou dando partida no carro. A estrada faria qualquer coisa ruim passar, ela tinha fé nisso, mas não mais do que tinha ciência do que se passava em seu íntimo.

Ao voltar da viagem, uma nova rotina - sem ele - fora implementada. O tempo passou a fluir sem maiores acontecimentos nem palpitações, mas a vida, progressivamente, fora se insinuando cada vez melhor e cada vez mais ela buscava enxergá-la dessa forma. As coisas tornaram-se mais simples, não havia alguém para dividir suas impressões diárias, e o constante aperto no peito era despistado com as atrações de um outro  dia programado para ser mais excitante que o anterior.

Aquelas vozes que ecoavam dentro dela foram blindadas por sorrisos largos, por itinerários cada vez mais inusitadas, por novas pessoas cheias de experiências diferentes. O importante era manter o que se passava dentro do coração trancafiado para que aquilo não enxergasse no vitral dos olhos o que realmente acontecia do lado de fora e botasse tudo a perder; diante do cárcere, os sentimentos insurgiram contra a indiferença e puseram-se a esmurrar as paredes que os calavam e, dessa forma, à medida que a vida se dizia melhor, aumentava também a sensação de que lhe faltava algo, de que o espaço vazio alargara-se.

Eram cada vez mais recorrentes as viagens, as saídas e as novas pessoas, trazidas por aquela maravilha de vida. Quanto mais o seu coração reduzia-se a cacos na tentativa de se fazer ouvir, mais obstinada por encontrar a beleza prometida nos novos dias ela se tornava, pouco importava o quão maior ficaria seu vão interno (o que estava aqui fora tinha de firmar cool-demais-pra-se-preocupar-com-bobeiras).

A.Vida. Seria. Boa., foi o que ela passou a repetir para si todas as manhãs.

Apesar disso, o que de fato aumentara foram as vezes que ela se sentava no chão durante o banho, como também se surpreendia rindo sozinha lembrando-se de algo daquela vida passada – e era curioso como aquele sorriso era mais sincero do que os rasgados pela nova linda realidade. 

Ela acostumou-se a conviver com o que lhe berrava seu coração e os gritos de outrora transformaram-se numa melodia que falava sobre saudades e sobre amor. Ela conseguiu estancar as feridas provocadas pelos solavancos dentro de si e mesmo que vez'enquando elas doessem, tal dor não era contestada pela tentativa de reafirmação da beleza daquela nova vida, fosse porque ela não mais acreditasse no que estava do lado de fora, fosse porque ela simplesmente aceitou a presença dele no seu íntimo, como marcas de uma época em que a vida não era tão boa assim, mas em que ela era mais feliz por vivê-la.

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