segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Existe um motivo para assistir os créditos até o final

Depois de algum tempo, a dona que limpava a sala após as sessões se familiarizou com a presença retardatária daquela pessoa nalguma poltrona do canto esquerdo, sempre das últimas fileiras. Nas primeiras ocasiões, ela se intrigava procurando o motivo para aquela mulher se manter ali, mesmo após o filme já ter acabado. Entretanto, ela se habituou depois, como quando não mais se estranham atitudes curiosas tornadas hábitos,  e ela a encarava com naturalidade – embora não houvesse perdido a curiosidade sobre aquela conduta.

Após alguns anos frequentando aquele cinema, a atitude daquela moça não mais era estranhada pelos que ali trabalhavam; na verdade, entre ela e os funcionários formou-se um laço de cordialidade, e ninguém ousava indagá-la sobre a sua saída atrasada das sessões, numa prudente postura daqueles que pressentem existir por detrás dum curioso agir uma explicação além das imaginações.

Ela não se dirigia somente até àquele cinema, mas preferia-o pelo clima mais íntimo que ele possuía e pelos filmes que nele eram promovidos. Dona Jandira, a senhorinha que limpava a sala, percebia que além de se manter ali até a projeção chegar ao final, nalguns filmes –  e somente naquele solitário momento – ela levava a mão direita ao lado esquerdo do seu colo e aquilo lhe parecia mais reticente do que sua insistência em ficar na sala mais um tempo. Apesar de não aparentar nada de especial, aquela mulher conservava essas duas atitudes que mexiam com a curiosidade de Dona Jandira e de alguns que ali trabalhavam, que sabiam pela boca daquela funcionária sobre insistência em permanecer na poltrona após todos saírem e sobre a mania de elevar a mão ao peito nalgumas oportunidades.

Para todos que conviviam com ela, aquela mania de colocar a mão no peito era comum, mas não a eximia das perguntas curiosas para saber o seu motivo. Ela sempre dizia se tratar de um tique como qualquer outro, mas ao invés de não pisar nas linhas da calçada ela fazia pôr a mão no colo quando algo lhe acontecia. Plausível para os que ouviam a explicação, mas inverídica. Ela contava a mentira pois não julgava necessário dizer o que realmente a impulsionava a fazer aquilo, tendo em vista que era algo íntimo demais e que cabia somente a ela e ao que era por ela acariciado naquele ato.

Numa certa terça-feira, depois de terminado um filme da sessão semanalmente assistida por aquela mulher, Dona Jandira finalmente se predispôs a sanar suas dúvidas e perguntou-lhe por que ela levantava a mão assim – repetiu o gesto – algumas vezes. À ela foi dada a mesma explicação de sempre: era um toque, uma mania, um tique.

- Ah, mentira. Você faz isso somente algumas vezes e bem pensado, então quer dizer que não é uma coisa boba. Eu, por exemplo, quando algo de ruim atravessa meu caminho, mesmo que seja um gato preto, eu me benzo e isso não é sem pensar.

Um pouco espantada com a sensibilidade de Dona Jandira, única pessoa em anos a não engolir a sua explicação – e ainda baseando-se em uma comparação tão simples e pertinente – ela resolveu abrir-se pela primeira vez após muito tempo, oferecendo-lhe como prólogo a saudade que sentia do seu amor, que há muito havia dela se separado, e da sua vã tentativa de tentar matá-lo em si, logo após a separação de ambas.

- A gente é bobo, né? Acha que essas coisas se vão com esses mantras que nos ensinam na rua, mas acaba que só fortalece o que mora do lado de dentro, disse-lhe a senhora.

Ambas estavam sentadas nas poltronas da penúltima fileira e Dona Jandira continuou ouvindo que após a separação, ela tentou sacrificar o que sentia por aquela menina atendo-se aos desentendimentos que aconteceram entre ambas, aos momentos ruins – ainda que eles fossem infinitamente menores do que os bons – que elas passaram, pois era necessário tirar o foco das saudades descomunais que ela sentia cada dia mais. De tanto se empenhar nessa tarefa, as lembranças desagradáveis, que já eram fraquinhas, ficaram desbotadas, e as bonitas, que perceberam antecipadamente a leviandade daquela empreitada e mantiveram-se quietinhas dentro de si, numa noite tomaram conta de todo seu coração como se lhe dissessem que ali dentro estaria pelo resto dos dias ocupado e que seguir somente seria possível carregando aquele amor no silêncio da saudade.

Dona Jandira ouvia tudo atentamente, disfarçando a surpresa pelo fato de que o amor sobre o qual ela ouvia era sentido por outra mulher, mas não atendo-se a esse detalhe; a placidez com a qual lhe era relatada a história apoderou-se de seu íntimo e ela sentia certa comoção naquele momento, quando pediu que ela continuasse. A sua interlocutora não contava sua história com dor, mas suas palavras traziam toda dose de saudade que existia no mundo, como se trancafiadas dentro dela por tantos anos elas fora adquirindo essa crosta de sentimentos doces até que encontrou alguém que realmente se interessou por ouvi-las e ao proferi-las, o açúcar inundava-lhe a boca e a alma com o gosto daquela menina.

Passado o tempo em que inutilmente se tentou apagar o que sentia, ela adquiriu hábitos solitários e tranquilos  Não fora negado à Dona Jandira que ela às vezes chorava pela falta que sentia, principalmente antes do sono, mas foi justamente numa destas noites que ela pegou-se acariciando seu coração, tal como fazia com sua menina, quando passava suavemente a ponta dos dedos pelo seu braço, fazendo-a adormecer naquele que talvez era o carinho preferido dela. Depois disso, ela acostumou-se a apaziguar as dores da saudade acariciando discretamente esse pedaço seu, fosse em sua casa, na rua, no trabalho, em qualquer lugar do mundo, de modo que um gesto outrora somente para amenizar uma tristeza passou a ser feito em qualquer momento, como se ela contasse-lhe por meio daquele alisar o que acontecia no seu dia-dia. 

O que fora silenciado entre elas foram somente as palavras e é verdade que ela não mais a cheirava, a olhava, mas como acontece àqueles que carecem de algum sentido, seu tato fora aguçado de modo que ela conversava com quem amava acariciando seu coração. Aquilo tornara-se sua proteção contra os maus-agouros do mundo; era o sue benzer.

Dona Jandira encontrava-se de certo modo consternada por aquela história e o saco de lixo que ela trazia na mão fora deixado ao chão de tão entretida que ela estava. A sua dúvida fora sendo elucidada de forma surpreendente, mas não inteiramente, pois ela ainda não entendia o porquê dela ser sempre a última a sair da sala e mesmo se manter com os olhos pregados na tela enquanto conversavam. Perguntou-lhe, então, a razão para isso.

- É que ela trabalha com essas coisas de cinema e eu procuro o nome dela nos créditos. Quando o encontro, fico orgulhosa, me bate uma saudade, daí levo a mão ao peito.

- Então agora está tudo explicado, disse-lhe Dona Jandira. Agora eu entendi a pátria amada.

- Pátria amada?

- Sim, era como eu te chamava por causa dessa sua mania. No início, das primeiras vezes que percebi, achei que era algum jeito de homenagear um filme brasileiro... você sabe, né?! Eu não entendo dessas coisas e cada doido com sua esquisitice. Mas quando vi que não tinha nada a ver, o apelido já tinha pegado.

Dona Jandira tinha um senso de humor gostoso. Aquela mulher riu da originalidade do apelido e levantou-se para ir embora, não antes sem agradecer aquela senhora por a ter ouvido sobre algo que há muito tempo não era falado. Quando encaminhava-se para a saída, após despedir-se, Dona Jandira a interpelou em voz alta, enquanto enfiava um balde de pipoca no saco de lixo:

- Aqui...  

- Oi, Dona Jandira!

- Ela te amou muito, né? Digo, pra você ainda sentir tudo isso...

- Amou sim.

- Hm... E sabe até quando você vai fazer isso?

- Fazer o que?

- Carinho nela dentro do seu coração.

- Não tenho ideia, Dona Jandira. Não tenho a menor ideia.

- Eu sei. Você vai fazer isso até sua pele ficar enrugada igual à minha e a partir de hoje vou te chamar de amada-amada.


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