Eu não ando me lembrando muito corretamente das
coisas, mas por coisas não quero dizer que esqueço-me com facilidade de onde deixei as
chaves da casa; refiro-me às minhas memórias afetivas. Dia desses, comecei a
repensar as vezes que devotei algum sentimento a alguém e a maioria das pessoas, como resultado desse exercício, evidenciou-se em minha mente com uma força franzina, suplicante, quase impossível de
provocar em mim qualquer recordação dos tempos passados – e certamente incapaz
de provocar em mim qualquer comoção sentimental. Tornou-se praticamente impossível realocar-me tal
como eu estive antes, quando por esses alguéns eu senti algum afeto – não necessariamente
romântico. Talvez seja essa a ordem natural das coisas, talvez sejam as pessoas
corpos de luz tão próximos de nós que a finitude de seu brilho coincida com o
término de sua existência em nossos corações.
Nenhuma recordação está intacta aos adornos de nossa
criatividade. Essa estabelece com a realidade passada uma relação de cômoda complementaridade,
acrescentando aos fatos impressões do nosso subjetivo, das nossas emoções, de
tal forma que a constante inventividade de nossos corações fazem inesquecíveis certas
historias. As idéias doutrora adquirem contornos próprios, inerentes à correspondência
com a entediante realidade. Houve o filme especifico, houve a música especial,
aconteceu aquele passeio no determinado restaurante ou deveras viajou-se para
aquela linda cidade, mas o que afastam esses fatos do clichê não é a sua existência
física ou sua efetiva consumação, mas tão somente a decantação natural do que
está insusceptível à passagem do tempo, repousando no fundo da alma como algo
insuperável.
Apesar da esclerose afetiva que tem apagado pessoas
em mim, a renovação das lembranças que possuo relacionadas a c. caminha na contramão
dos demais, encontrando à sua frente uma via desobstruída, pela qual ela corre
e sorri para mim. Parece que enquanto estivemos juntas, ela mandou abrir esse
caminho de forma silenciosa, passando pelos lugares mais ocultos de meu ser,
de modo que ninguém poderia usurpar-lhe sua trajetória ou igualar-se a ela em sua caminhada pela minha existência.
Seus trajetos canhotos mostram-me parte de suas curvas quando olho para dentro
de mim, mas olvidam dos meus sentidos boa parte de sua dimensão, de modo que pensar nela, embora limitadas as lembranças factuais, seja uma sempre inesperada agitação de doces sentimentos. Posso dizer que, em contrapartida ao caminho retilíneo que todos traçaram em mim até hoje, são os seus propositalmente curvilíneos, cabendo dentro do mesmo espaço que pela
reta é curto considerado, a sinuosidade de uma vida inteira de saudades e de amor.
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