terça-feira, 15 de outubro de 2013

a coceira da saudade propriamente dita

Era hábito, depois de duas ou três vezes fazendo aquele caminho, escolher uma das primeiras poltronas localizadas na janela, na fileira que se alongava atrás do motorista. Eu procurava comprar o bilhete para aqueles lugares que eram saídas de emergência, pois ela havia me chamado atenção para o fato de que esses assentos eram mais espaçosos, mas nem sempre estavam disponíveis; a opção por eles nada tinha a ver com precaução, mas tão somente com o conforto maior que me proporcionariam ao longo das oito horas de viagem, e a insistência em viajar nas fileiras da esquerda era porque eu sentia enorme prazer ao ver a cidade onde ela morava surgindo ao longe, por entre algumas montanhas, mas que primeiramente anunciava-se sob uma nuvem opaca de luzes (quando à noite).

Desde o apontamento dos prédios no meu campo de visão a chegar à rodoviária, passavam-se cerca de cinquenta minutos, mais longos do que as precedentes sete horas já trilhadas – e mais rápidos do que os quinze minutos dentro do metrô até chegar ao seu apartamento. Não foram raras as vezes em que ela foi me buscar no terminal, mas eram mais prazerosas as que ela se mantinha em casa enquanto eu fazia o interminável trajeto de termináveis minutos para encontra-la, e por um único motivo: era indescritível a sensação de vê-la em trajes despojados, fresca pelo banho recém-tomado, e me deitar em cima dela enquanto a beijava sorrindo.

Por algumas vezes eu tentei enganá-la dizendo estar mais distante do que realmente me encontrava, sádico prazer de afligi-la por mais tempo quando minha chegada inesperada acabaria com sua ansiedade. Em todas as vezes eu desci no lado errado da estação e ia parar do outro lado da avenida na qual estava sua casa, demorando realmente quase o tempo mentirosamente estimado, pois minha ansiedade em vê-la logo era quem me pregava a peça.

Os dias que se seguiam não diferiam daqueles passados por casais apaixonados e que moram longe, mas como todos pensamos ser único e superior o amor que vivemos, talvez fossem os nossos mais doces do que os dos demais por nos darmos muito bem em todos os campos afetivos, como o da amizade e do companheirismo, e principalmente porque eu a amava além da compreensão. 

As despedidas, existiram todas, menos a última.


***


Embora eu já tenha empregado inúmeras vezes a frase “Estou com saudades”, poucas foram aquelas que eu realmente as sentia. Excluindo destas experiências aquelas relacionadas aos meus pais, as saudades que senti por alguém resumia-se a um lânguido filetinho de água gotejando lembranças em meu cérebro e se evaporando antes mesmo de chegar ao coração, incapaz de me inundar como foi quando eu as senti pela primeira e única vez, por ela, quando eu realmente transbordei.

Não trato aqui das saudades imediatistas, presentes na distância que nos separava ou logo após nosso término. Essa última, aliás, era insuportável, é fato, mas estava imiscuída em fatores externos como a quebra da rotina, os ciúmes pela falta, a ausência do verbo. Essa última todo mundo sente. As saudades da qual falo surgiram quando não mais razão eu tinha para senti-las, fosse pelo tempo passado e dito suficiente para esquecê-la, fosse pela ausência de perspectiva em reencontrá-la.

Sentimentos, como o próprio nome já sugere, somente o são quando tangem os nossos sentidos, senão não passam de algo abstrato e tênue. Eu dizia sentir saudade de alguém, mas aquilo nada mais era que o incenso de alguma memória na minha cabeça, incapaz de tangenciar meus sentidos ou fazer-se sentir em meu coração. Não era sentido, logo não era um sentimento e, por conseguinte, impossível de ser saudade.

Quando eu me vi completando um ano sem encontra-la percebi que não possuía mais nenhuma razão para sentir sua falta tamanho o tempo que já estávamos sem nos ver e que possuía todas as mundanas prerrogativas para esquecê-la. As saudades que por ela eu sentia não passaram a partir de então a serem credenciadas como tal, mas somente entendidas, pois pela superficialidade do óbvio e do efêmero era incompreensível que mesmo depois de tantos dias eu sentisse uma visceral dor quando ia dormir somente por me lembrar de quando eu a cheirava na curva do rosto onde se escondia seu cheiro ou de como era bom beijá-la. Entendi que, enfim! – e não sei se por mal ou por bem – eu sentia saudades de alguém e que a falta física foi uma fracassada tentativa de amputar de meu coração a sua presença etérea-e frustrada porque eu continuaria a sentir o formigamento da sua existência ainda que não mais houvesse a razão palpável para isso.


E de forma inexplicável e paradoxal, quando não mais existiu em mim a matéria na qual se esbarraria e faria se detectar a saudade, eu senti em meu coração sua doce e inarredável presença, enfatizada ainda mais durante as noites em que desejei tê-la ao lado dormindo em meu braço. Após ter o aval do tempo e das circunstâncias para não mais sentir a sua falta, eu percebi que sua existência, sorridente, suave e amável, continuaria a descansar tranquilamente sob a sombra do meu coração, ainda que mais mil anos de esquecimento reluzissem buscando ofuscá-la.


"Ama-me. É tempo ainda, interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida avidez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora

Há tanto tempo sua própria tessitura.

Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas."

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