quarta-feira, 30 de outubro de 2013

curvas da alma

"Desacelera, menina. Desacelera o coração." O balbuciar baixo, tão baixo que se assemelhava à uma oração própria de alma condenada, era dito perto dos seus ouvidos, enquanto seus cabelos emaranhados eram desafiados pelos dedos que experimentariam apenas os anéis feitos pelos ossos da longevidade. Nenhum dos dois possuía propriedade para acalentar o outro, o coração hipertrofiado por sentimentos em flor denunciava a farsa de qualquer consolo, mas as palavras eram repetidas em um tom celestial, naquele tom bicentenário que nos falam os avós no leito de morte: "Desacelere esse coração."

A sacada de ambos, naquele cinzento e vaporizado dia, foi perceber que ao tentar ser são, um espírito somente encontra a enfermidade num mundo no qual a lucidez é sinônimo de indiferença. De tanto buscarem a sanidade, cada um num canto e em cidades afastadas e igualmente populosas, encontraram-se na loucura dos que percebem não ser possível amar e ser normal. Entregaram-se à doença da pureza que desde cedo causava um comichão em seus corações e purgaram naquele dia pela dor de descobrir que os mais disparatados eram os que possuíam a maior beleza dentro de si (e que poucos saberiam dessa verdade).

"Desacelera, menina. Desacelera esse seu coração." Ele continuou repetindo junto ao seu ouvido, enquanto a chaleira assobiava o agudo que teria a força de tirá-lo da cama noutro dia qualquer, não fosse o peso daquela cabeça em seu braço, enquanto as sobrancelhas da menina de coração pulsante eram penteadas pelo seu indicador. Acomodaram-se naquela cama de solteiro, quase impossível de abraçá-los juntos, mas que era grande o suficiente para abrigar toda a angústia do mundo, porque eles sofriam - e sofriam muito! - pelos demais estarem tão tristes nas ruas, disfarçando seu amar comum com sorrisos de escárnio. 

"Fique aqui que eu já volto com uma surpresa quentinha pra você", ele lhe disse. Saiu da cama, calçou o par de Havaianas brancas e dirigiu-se à cozinha, onde preparou o chá. Ao voltar para o quarto, percebeu que ela havia dormido num compasso em que seu peito inflava-se e murchava fundo, quase tangendo a pele das costas. Ora planalto, ora vale, a frequência daquele movimento era rápida demais até para os padrões de um maratonista amador ao final de uma prova. Preocupado, ele chegou perto de suas ventas e percebeu que sua respiração era mais planície que a de um recém-nascido dormindo no peito da mãe e tranquilizou-se por sua saúde, mas sentiu um doce pesar pelo seu jeito de sentir as coisas. Então, como se fosse um xamã que conhecesse profundamente aquela loucura, junto ao seu ouvido coberto pelas mechas advertiu-lhe novamente, em tom de prece, em tom de súplica: "Se você nunca desacelerar esse seu coração, menina, vai acabar morrendo de amor qualquer dia desses..." e deitou-se ao seu lado, mostrando através da camisa cinza-desbotada o seu relevo ainda mais acidentado, escavando-se e soerguendo-se em intempérie, tamanho amor sentia por ela.

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